Herança digital motiva ações judiciais

João Victor Neves, de 20 anos, morreu em um acidente enquanto pedalava em Santos, em abril de 2021. Só depois o irmão dele, Lucas Neves, de 31 anos, se deu conta de que já não tinha mais a maioria das fotos com o parente. Isso porque os arquivos armazenados no celular de Lucas haviam sido perdidos. Fora aquilo, restava pouco: umas dez fotos e a conversa na caixa de mensagem do Instagram.

A família entrou na Justiça para pedir acesso aos arquivos do iPhone de João Victor. “Hoje me dói muito ver que não tem muita conversa salva entre nós dois. São pequenas coisas que doem e que a gente vê que não dava muita importância”, diz Lucas. Em janeiro deste ano, a Justiça determinou o acesso ao material.

Foto: Banco de Imagens

Decisões sobre a chamada herança digital são raras no Brasil, que ainda não tem lei específica sobre acesso a arquivos e contas online de alguém que morreu. “É um caso pioneiro (o de Neves). Até porque encontramos casos que buscavam acesso a perfis em redes sociais, e o nosso busca os arquivos de um celular”, diz Marcelo Cruz, um dos advogados responsáveis pela ação.

O problema, porém, ainda não foi resolvido. O pedido inicial foi de acesso ao celular, mas a Apple afirmou, segundo consta nos autos do processo, não ter informações sobre as senhas de desbloqueio de tela e disse que só seria possível conceder dados salvos na nuvem, nos servidores da empresa. Mas o e-mail que Lucas imaginava ser o particular de João era uma conta secundária.

“Tem apenas alguns vídeos, e não sei qual é o e-mail pessoal em que ele guardava os arquivos”, lamenta o irmão, que ainda busca uma forma de ter acesso às recordações. Por ora, ele mantém os objetos de João Victor intactos no quarto e tenta superar o luto.

Debate novo
A herança digital abre o debate sobre o que são bens e patrimônios digitais que podem ser herdados. Alguns itens digitais são considerados patrimônios de modo consensual entre especialistas, como contas bancárias, ações e milhagens. Mas o consenso acaba quando se entra no campo de arquivos privados, como contas em redes sociais, conversas em aplicativos e fotos e vídeos guardados na nuvem ou em smartphone.

“São bens digitais que envolvem questões ligadas ao que chamamos de direitos da personalidade: a vida privada, a intimidade, a honra, a imagem”, afirma o especialista em Direito Civil Eduardo Tomasevicius, professor da Universidade de São Paulo (USP).

Há duas opiniões predominantes. A primeira é de que o direito à personalidade (que inclui a privacidade) se sobressai ao direito sucessório – de herdar algo – mesmo após a morte. Os defensores desta ideia são mais resistentes à permissão do acesso de dados privados por terceiros. A segunda é o inverso: os direitos sucessórios também se aplicam aos direitos da personalidade. Nesta linha, o herdeiro tem direito sobre os arquivos digitais.

O tema ainda não foi decidido em tribunais superiores. Na Câmara, há um projeto de lei para fixar regras sobre dados de falecidos, mas especialistas dizem que o texto ainda é insuficiente para dar segurança jurídica. A ideia é incluir direitos autorais, dados pessoais e interações em redes sociais na definição de herança contida no Código Civil – parte dos juristas , porém, os vê como intransmissíveis.

Na Alemanha e na Espanha, entende-se que sobressaem os direitos sucessórios, exceto que haja declaração deixada pelo falecido de não dar acesso. Já nos Estados Unidos, só há acesso com a permissão prévia.

O debate passa ainda pela mediação dos arquivos digitais pessoais por empresas privadas, seja de armazenamento dos arquivos na nuvem – como o Google com o Drive e a Apple com o iCloud – ou de redes sociais. Ao usar um desses serviços, o usuário concorda com cláusulas que determinam o destino dos dados.

O caso Neves, para o advogado, expõe a importância de regras claras. “Demonstramos que a proteção de dados de pessoas mortas deve ser caso a caso. No nosso, foi para ter lembranças de uma pessoa querida, nada mais.”

Contrato
Ao criar conta em rede social, o usuário assina termo de uso que vale como contrato. Cada plataforma fixa as próprias regras para o que é feito com a conta após a morte.
O Facebook transforma o perfil em memorial e permite que um contato herdeiro seja definido previamente pelo usuário para gerenciar o perfil.

O Instagram também transforma o perfil em memorial, mas não permite contato herdeiro.
Já o Google e a Apple têm ferramentas similares que permitem herdeiros de dados.
No Google, o usuário pode decidir quem terá acesso e a quais arquivos.

Na Apple, é possível adicionar mais de um contato, mas não escolher quais arquivos ficarão disponíveis. As plataformas dizem não ter dados de quantos já optaram pelo contato herdeiro.

Por causa das ferramentas, as empresas entendem que se o usuário não determinou contato herdeiro significa que não desejava repassar a conta.
Nessas situações, o Facebook, por exemplo, exclui a conta, se identificar que o dono morreu, mas alguém segue usando.

O Instagram sequer permite entrar no perfil transformado em memorial. Aí a alternativa para ter acesso é tentar na Justiça.

No Brasil, há ações judiciais nos quais pais reclamam da exclusão repentina do perfil de filhos falecidos pelas redes sociais. As plataformas alegam que a exclusão foi feita porque o dono do perfil não havia definido contatos herdeiros.

Em um desses casos, a 31.ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça paulista viu como correta a postura das empresas, por estar de acordo com os termos de uso do site aceitos pela dona do perfil. Para o relator da ação, ao aderir aos termos de uso, a usuária aceitou a regra da impossibilidade de acesso após a morte.

Laura Schertel Mendes, docente de Direito da Universidade de Brasília (UnB), é crítica a esse entendimento. Para ela, a legislação que vale no Brasil nos casos de herança digital é o Código Civil, uma vez que a Lei Geral de Proteção de Dados – que assegura a privacidade dos usuários – não diz nada sobre os dados de um falecido. “E no Código Civil será aplicado o direito relacionado aos direitos das sucessões, que determina, sim, a transferência dos chamados bens e das obrigações de uma pessoa”, avalia.

Entre as obrigações estão os contratos – incluindo os firmados com redes sociais, defende Laura. “Por isso, em princípio entendo que não seria possível excluir todos esses dados e bens digitais com o argumento da privacidade”, diz.

O entendimento dela é baseado em decisão do tribunal superior alemão, que analisou o pedido de uma família de acesso ao perfil da filha no Facebook para entender as circunstâncias da morte – a suspeita era de suicídio.

Com o mesmo argumento do caso brasileiro, a plataforma negou o acesso, mas a Justiça superior alemã concedeu acesso com base no entendimento de que as cláusulas da empresa feriam o direito sucessório.

Testamentos
Ainda sem lei específica, advogados e tabeliães têm sugerido que o destino de dados digitais também seja incluído em testamentos. A decisão é uma alternativa à declaração nas redes, ferramenta desconhecida por parte dos usuários. “Quando você deixa a sua vontade em testamento, fica mais fácil, seja para dar o acesso ou não”, diz o advogado Rodrigo Pereira da Cunha, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Embora ainda restritos no Brasil, testamentos ganharam força por causa da pandemia, segundo o Colégio Notarial do Brasil (CNB). Em 2021, o País bateu o recorde de documentos do tipo (38 mil), ante 32,8 mil em 2020.

O motivo é a sensação de risco de morte, avalia o tabelião e diretor do CNB, Andrey Guimarães Duarte. Foi essa uma das razões para o jornalista e investidor Gians Fróiz, de 27 anos.

Atuante no mercado das criptomoedas, ele viu o patrimônio crescer e começou a se preocupar com o destino dos investimentos caso viesse o pior. Quando iniciou o processo em cartório, aproveitou para incluir todo o resto da sua vida digital.
No testamento, incluiu documentos assinados digitalmente, fotos, vídeos e contas de redes sociais, além dos investimentos.

Cogitou deixar a mãe como responsável pelos bens, mas optou pelo namorado, diante da dificuldade que a mãe teria de lidar com o mundo virtual. “E eu não sabia dessa opção, por ser um assunto pouco conhecido. Só descobri a chance de dar destino aos meus dados digitais quando pesquisei na internet”, diz.

 

Agência Estado

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