Economia crescente, Ruanda ainda lida com trauma 30 anos após genocídio

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No 16 de maio de 1994, a capa da revista americana Time destacava uma reportagem sobre a matança de milhares de tutsis por hutus que se desenrolava no leste africano. Em letras garrafais sobre a foto de dois garotos negros, havia a frase de um missionário: “Não há mais demônios no inferno. Eles estão todos em Ruanda”.

Passados 30 anos do genocídio, o país cresce economicamente, é exemplo de igualdade de gênero na política e atingiu bons patamares de segurança e corrupção quando comparado a seus vizinhos. Mas os demônios do massacre ainda se fazem presentes.

A distinção entre as etnias em Ruanda existia desde antes da era colonial africana. Tutsis formavam uma elite de administradores e pastores de gado, enquanto hutus, a maioria da população, cuidavam da agricultura. Twas eram uma pequena minoria de caçadores-coletores.

O domínio belga fixou as etnias em documentos de identidade, privilegiou tutsis e acirrou tensões entre os grupos. A independência, em 1962, colocou hutus no poder e forçou a migração de milhares de tutsis aos países vizinhos. Ciclos de violência entre tutsis exilados que buscavam voltar ao país e forças hutus de Ruanda continuaram nas décadas seguintes e culminaram numa guerra civil de 1990 a 1993.

Em 6 de abril de 1994, um cessar-fogo foi quebrado após o avião que levava o então presidente ruandês, Juvenal Habyarimana, ser abatido perto da capital, Kigali. Foi o estopim para o genocídio perpetrado pelas forças do governo e milícias hutus. Estima-se que 800 mil tutsis e hutus moderados tenham sido massacrados em cem dias e que cerca de 250 mil mulheres tenham sido estupradas.

Após o genocídio, a Frente Patriótica de Ruanda (RPF), organização militar e política nascida no exílio e que desarticulou os extremistas hutus, passou a ambicionar uma “união nacional”. Um hutu membro da RPF assumiu a Presidência, com o tutsi Paul Kagame na vice-liderança.

Em 2000, em conflito com o vice, o presidente renunciou, e Kagame assumiu o poder. Desde as primeiras eleições após o massacre, em 2003, ele tem sido eleito com mais de 90% dos votos.

Sob sua tutela, Ruanda aboliu as distinções entre etnias em documentos e conquistou números que impressionam especialistas. É, por exemplo, o país com maior número de mulheres no Parlamento. No ranking mundial de percepção da corrupção da ONG Transparência Internacional, ocupa a 54ª posição, a melhor entre os países africanos. Segundo dados do Banco Mundial, registrou 4 homicídios intencionais a cada 100 mil habitantes em 2022 (ante 22 a cada 100 mil no Brasil).

Na economia, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, embora ainda enfrente alto nível de desigualdade, desemprego e pobreza, o PIB cresce a uma taxa estável de 8,5% desde 1995, resistindo a choques externos como a pandemia e a Guerra da Ucrânia.

Por outro lado, Kagame é criticado por permitir pouca abertura política e é acusado pela Anistia Internacional e pela Human Rights Watch de perseguir jornalistas e opositores.

“Kagame é conhecido desde há muito tempo, talvez por causa de seu passado militar, como rigorosamente disciplinador e até intransigente”, afirma David Kiwuwa, professor de Estudos Internacionais da Universidade de Nottingham e pesquisador de sistemas políticos africanos.

“Ele é amado e temido ao mesmo tempo. Faz encontros mensalmente com seus ministros para que eles relatem suas ações e não tem medo de demiti-los. Mas criticismo é pouco bem-vindo, e há um número considerável de ex-membros do governo que estão na cadeia por infrações disciplinares e acusações de corrupção”, diz Kiwuwa.

A tensão política corre ao lado de queixas sobre o processo de justiça em relação aos massacres. Cerca de 10 mil perpetradores foram julgados pelos tribunais convencionais ruandeses. Para julgar líderes políticos, militares, religiosos, além de donos de meios de comunicação e empresários responsáveis por planejar e incentivar o extermínio, as Nações Unidas criaram uma instância específica para o caso de Ruanda, que indiciou 93 pessoas.

No âmbito internacional, a corte da ONU estabeleceu marcos em relação a genocídios. Foi a primeira vez, por exemplo, em que um chefe de governo foi julgado por esse tipo de crime; também foi inédita a decisão de um tribunal considerar que estupros se enquadravam em práticas genocidas.

Para dar conta, entretanto, da quantidade de assassinatos cometidos por cidadãos comuns, Ruanda estabeleceu de 2005 a 2012 as chamadas cortes gacaca (lê-se gachacha). Tribunais ao ar livre, cujos juízes eram líderes comunitários respeitados nas comunidades, tinham por objetivo, além de fixar sentenças, esclarecer a verdade sobre os crimes.

Nas mais de 12 mil cortes gacaca, foram julgados cerca de 1,2 milhão de casos. Com frequência, prisioneiros que confessavam seus crimes podiam voltar para casa sem penas ou podiam pagá-las com serviços comunitários. Assim, vítimas podiam saber o que tinha acontecido com parentes, e os criminosos tinham a oportunidade de mostrar arrependimento e pedir perdão à comunidade.

“Esse sistema permitiu que se falasse sobre o genocídio, que as disputas fossem resolvidas dentro das comunidades e que as tensões não escalassem como havia acontecido no passado”, diz Phil Clark, professor de política internacional da Universidade de Londres, especialista em justiça de transição e autor de livros sobre Ruanda.

Ele diz, porém, que há insatisfações de ambos os lados. “Muitos sobreviventes defendem que a justiça não foi suficiente. Há reclamações na comunidade hutu de que todos eles teriam sido retratados da mesma maneira, embora uma pequena minoria tenha cometido os massacres e de que os crimes do Exército de Kagame nunca foram julgados”.

Clark diz que há ainda um profundo nível de trauma em Ruanda. O mês de abril é particularmente sensível, principalmente em áreas rurais. “Há cinco ou seis anos o governo mudou sua estratégia sobre as celebrações em memória do genocídio. Passou a fazer grandes eventos que aconteciam no ginásio de Kigali. Havia choro e lamento num nível em que as pessoas quase convulsionavam e precisavam ser atendidas por médicos.”

Segundo o pesquisador, o trauma muitas vezes é herdado pelas novas gerações, que cresceram ouvindo histórias de 1994 ou carregam o peso de serem eles mesmos consequência do conflito, como os filhos que nasceram dos estupros cometidos. De tempos em tempos, ruandeses ainda descobrem valas com vítimas do massacre.

“É admirável, porém, que perpetradores tenham voltado para suas comunidades e vivam lado a lado com sobreviventes, e o país tenha permanecido seguro e estável. Uma grande conquista”, afirma Clark. Ainda que alguns demônios continuem por lá.

MANUELA FERRARO / Folhapress

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